Toda arte é política

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Artur Barrio, Situação T/T1 para a manifestação Do Corpo à Terra, 1970.

Um governo que coloca a cultura em último lugar de suas prioridades – junto com a educação e os direitos humanos – cria uma conjuntura em que ser artista, por si só, já é uma forma de resistência. Sem apoio, sem incentivo, sem valorização, sem espaço, sem voz: fazer arte é emitir um grunhido desesperado contra a situação neste país, por mais que tentem silenciar a classe artística. Tentaram acabar com o Ministério da Cultura, tentaram tirar as artes das escolas, agora tentam congelar a educação que já é precária. Para além das pichações, dos graffiti, das performances e outras manifestações explicitamente políticas da arte, toda forma artística é política: não importa se pintam um vaso de flores com tinta a óleo com ideais renascentistas.

Toda arte sempre vai ser política porque é resistência, e para além disso, é o cumprimento de uma função social. Arte é essencial para o funcionamento da comunidade, assim como saúde ou educação. Ser artista é uma profissão que preenche uma lacuna social, assim como ser médico ou professor. Como sociedade, compartilhamos um ambiente “comum”: compartilhamos as ruas, as instituições, o comércio e partilhamos também um universo imaterial, sensível, que são nossas percepções do mundo que nos cerca. Ter esta ou aquela profissão, ser artista ou médico, significa que cada um tem competências na partilha desse comum. Enquanto o médico trata de cuidar dos enfermos fisicamente e biologicamente, o artista trata de transformar o universo sensível que compartilhamos em uma forma que cuida dos enfermos da alma e deixe mais claras as estruturas sociais que sustentam e adoecem determinada sociedade.

Meu querido Jacques Rancière, em A Partilha do Sensível, diz: “Existe, na base da política, uma ‘estética’ que não tem nada a ver com a ‘estetização da política’. (…) É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (…) As práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade.”

Arte e política fazem parte do mesmo plano, onde uma influencia a outra mutualmente, e onde nenhuma tem prioridade sobre a outra, muito menos são produtos uma da outra, mas andam juntas, emprestando a cada uma o que a outra também pode lhe emprestar. Como produto social, como expressão de determinado espaço e tempo, a arte tem como função a fomentação do senso crítico individual, algo que é cada vez mais negado à população. Na nossa sociedade administrada, em que somos domesticados a comprarmos tal marca, a consumirmos tal produto, a reproduzirmos tal discurso, a arte se faz necessária como uma das poucas oportunidades de se exercitar a liberdade de pensamento, e isso é um tesouro de valor imensurável.

Toda arte é política e deve ser tratada enquanto tal. Subjugar a arte como “puramente estética” é elitizá-la, segrega-la, desrespeitá-la; e de elitismo e desrespeito, a arte já sofre demais. Arte é necessária, essencial, primordial: é tudo isso porque é política. Arte e educação são as únicas coisas capazes de mudar efetivamente este país e, por isso, são os direitos mais atacados pelo governo atual. Arte ou barbárie. A barbárie está aí.